A experiência do paciente oncológico e família na UTI

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“Fujo de hospital, tenho horror de passar naquele PA”

“Depois que meu esposo ficou internado na UTI não consigo passar nem perto da porta”

“Não quero ir para a UTI de jeito nenhum, tenho trauma”

 

Quem nunca escutou uma fala como essa?

É muito comum escutarmos a palavra trauma relacionada ao contexto de UTI/emergência.

Essa palavra pode ter diferentes significados, mas de modo geral, se refere ao que podemos encontrar no dicionário (www.dicio.com.br): “experiência emocional intensamente desagradável que pode causar distúrbios psíquicos, deixando uma marca duradoura…”

 

Por que as pessoas relacionam UTI/emergência com trauma?

O ambiente de UTI/emergência é de muita intensidade. A equipe está em constante movimento, existem muitos barulhos e falta de privacidade. Esses fatores por si só já contribuem para alterações de sono e humor.

Além disso, é um contexto permeado por gravidade e dor, onde muitas vezes são necessários procedimentos invasivos, sobre os quais o paciente pode não estar completamente ciente.

A combinação desses fatores traz uma grande ameaça à sensação de segurança e consequentemente suscetibilidade a uma experiência traumática

 

A experiência do paciente oncológico e família na UTI/emergência

O paciente oncológico e a família já enfrentam dificuldades por causa do tratamento. O diagnóstico de câncer faz com que eles tenham que reestruturar o seu cotidiano e as expectativas de futuro.

O tratamento pode gerar mudanças físicas, a percepção que o paciente tem dele mesmo e os seus relacionamentos. O equilíbrio psicológico fica ameaçado pelo medo da morte e também pelo medo de viver com as dificuldades que o câncer pode gerar.

Por tudo isso, embora não seja uma regra, os pacientes oncológicos têm mais risco de ter transtorno de ajustamento e episódio depressivo.

Considerando esse cenário, a vivência da UTI/emergência resulta em uma ruptura dos vínculos afetivos e rotina do paciente, o que gera sensação de isolamento e solidão, apatia, angústia, medo da dependência e da morte de forma ainda mais exacerbada.

O ambiente, as situações que ocorrem nos outros leitos, a dúvida quanto a gravidade e o que vai acontecer geram temor, ansiedade e acentuam a fragilidade do paciente e percepção de morte.

Muitos pacientes vão precisar ser sedados, mas isso não necessariamente facilita essa vivência por gerar lacunas posteriores que dificultam a assimilação de limitações físicas e dispositivos, o que pode gerar muita ansiedade.

Já para a família, a vivência da UTI/emergência é de modificação da dinâmica familiar, de muitas vezes ver o paciente vulnerável de uma forma nunca antes vista, de ter que se afastar dele, de dificuldade com falta de informação e rotinas da unidade, que são novas e diferentes, podendo ocorrer desencontros na comunicação com a equipe.

Tudo isso gera angústia, ansiedade, sensação de impotência e exaustão.

É muito comum a família ter dificuldade de compreender informações. Mesmo quando não ocorrem desencontros com a equipe, pode acontecer uma escuta seletiva: devido à situação altamente estressante os familiares escutam aquilo que é menos difícil de assimilar do ponto de vista emocional.

 

Delirium

Delirium é um estado confusional agudo resultante de uma disfunção orgânica, caracterizado por um início repentino e flutuação do nível de consciência. É uma alteração neuropsiquiátrica prevalente em pacientes com câncer hospitalizados, principalmente em casos de câncer avançado. Estudos mostram que cerca de 44% dos pacientes com câncer apresentam delirium e essa incidência aumenta para 87% nos últimos dias de vida.

É muito comum o delirium ocorrer no contexto de UTI/emergência e esse quadro impacta de forma importante a experiência do paciente e da família.

Nem todos os pacientes se recordam do delirium, mas os que se lembram descrevem como uma experiência muito estressante. Quanto mais o paciente tem lembranças do delirium maior é o seu sofrimento. Estudos mostram que a recordação delirante é um fator que contribui para a ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático.

O sofrimento da família pode ainda ser maior do que o do paciente, especialmente em casos de delirium hiperativo (quando paciente apresenta inquietação, alucinações, delírios e hipervigilância).

 

Agravante: pandemia

Devido à pandemia de COVID-19 foram necessárias medidas de segurança a fim de de conter a disseminação da doença, que criaram barreiras nas formas de cuidado, como:

  • Restrição de visitas, mesmo em ambientes não covid, o que diminui o suporte social recebido. O paciente muitas vezes fica sozinho pela família ter medo de vir ao hospital e se contaminar, o que aumenta a experiência de solidão e isolamento.
  • Dificuldade na comunicação com a família, tanto da família com o paciente, quanto da família com a equipe, o que aumenta a sensação de insegurança e medo.
  • A própria paramentação dos profissionais nos ambientes de covid deixa a experiência ainda mais assustadora para alguns pacientes.

Humanização no contexto de UTI/emergência é algo que já se fala há bastante tempo, mas a pandemia reafirmou o quanto ela é importante e contribui para uma experiência menos traumática para o paciente e família.

 

Impacto emocional

Essa experiência vai gerar um impacto emocional que aparece como sintomas psicológicos, que podem virar distúrbios.

Estudos mostram que pacientes têm risco elevado de apresentarem sintomas psicológicos durante e após sua internação na UTI. Aproximadamente um terço dos pacientes apresentam sintomas de ansiedade e depressão durante o primeiro ano de recuperação.

Sintomas de estresse pós-traumático (evitação, pensamentos invasivos e ansiedade relacionados à experiência traumática) também podem estar presentes, sendo mais frequentes em ex-pacientes de UTI (9 a 27%) do que na população geral (1 a 9%). Esses sintomas têm sido associados com uso de benzodiazepínicos, qualidade de sono ruim, dor, transtorno psiquiátrico prévio, delirium e altos níveis de estresse durante o tratamento na UTI.

Esses sintomas podem ter um impacto profundo e duradouro na qualidade de vida do indivíduo e influenciar negativamente o enfrentamento do tratamento oncológico.

 

Leia a seguir o próximo artigo da série sobre o paciente oncológico e família na UTI: O cuidado da psicologia com o paciente oncológico e família na UTI e emergência

 

Fontes e mais informações:

  • Costa MAS. Contribuições da psicologia na intervenção de delirium em UTI. Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUC-Rio. 2014. http://www.innerpsicologia.com.br/arquivos/delirium.pdf
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